As considerações finais deste Relatório configuram-se como apontamentos para se pensar de outras maneiras os processos de escolarização, as práticas de avaliação e as políticas públicas relativas à educação escolar básica.
A análise quali-quantitativa dos desempenhos percentuais médios das crianças em todos os 55 itens da Prova Campinas 2010 conduz ao seguinte resultado geral, surpreendente: que o desempenho em se fazer um determinado uso da linguagem varia expressivamente em função dos tipos de práticas culturais que tais usos são solicitados a significar. E, inversamente, que o desempenho das crianças em relação a modos considerados adequados de significar uma determinada prática cultural também varia expressivamente em função dos diferentes usos da linguagem solicitados para se produzir significações adequadas a essas práticas.
Devemos, portanto, indagar o que esta flutuação ou dispersão dos desempenhos percentuais médios das crianças em relação aos descritores eleitos para orientar a análise de suas respostas poderia estar significando.
Pensamos que, antes de mais nada, elas indicam a impossibilidade de se afirmar algo em relação à competência ou incompetência das crianças para realizarem direta e efetivamente as diferentes práticas culturais referidas, tanto nos textos quanto nos comandos textuais da Prova Campinas 2010.
Isso porque, como indicamos em nossa análise, o que as crianças podem direta e efetivamente mostrar em uma prova escrita são as suas competências em práticas de leitura e escrita na língua portuguesa, bem como competências para significar práticas extraescolares, exclusivamente através das práticas conjugadas da leitura e da escrita.
Por essa mesma razão, essa impossibilidade de levar as crianças a um domínio direto e efetivo de práticas culturais mobilizadas em contextos extraescolares de atividade humana não pode ser atribuída apenas aos professores. Trata-se de uma impotência interna das práticas escolares, que está ligada ao próprio modo como os processos de escolarização, afastados desses campos de atividade, se instituíram como um campo autônomo e independente a partir do advento, no século 19, dos sistemas modernos de ensino.
O modo disciplinar de mobilização cultural que persistiu ao longo de todas as reformas curriculares pelas quais passou a instituição escolar moderna, ao ver as práticas culturais com base nas dicotomias forma versus conteúdo e teoria versus prática, reforçou ainda mais a separação entre práticas culturais e os supostos conteúdos conceituais e/ou procedimentais por elas mobilizados. Essa dicotomia levou a uma concepção essencialista dos processos de significação, que veem os significados de conhecimentos e valores como estáticos e independentes entre si, bem como das práticas culturais que os mobilizam em diferentes contextos e situações.
Esses processos de escolarização atribuíram um valor em si sem precedentes - um superpoder- às práticas de leitura e de escrita nas diferentes línguas nativas, de modo a estabelecer uma ruptura e naturalização inadmissíveis entre: 1) saberes, valores, ação corporal e jogos de linguagem; 2) saber e saber fazer, isto é, entre saberes e práticas culturais que os mobilizam, como se todo saber não fosse um saber fazer do corpo e com o corpo, uma prática corporal.
Os resultados da Prova Campinas 2010 parecem reforçar a crença de que processos educativos, quaisquer que sejam os contextos de atividade humana em que ocorram, constituem POLÍTICAS DE GESTÃO E AUTOGESTÃO INTERATIVAS DO CORPO HUMANO. Mas isso não significa, é claro, que práticas de leitura e escrita não devessem merecer atenção constante da escola e na escola. As diferentes práticas de alfabetização e letramento parecem ser realizadas nesta instituição sob concepções disciplinares estreitas e restritas à disciplina de Língua Portuguesa, e não com a amplitude com que as vê a perspectiva dos JOGOS DE LINGUAGEM à qual recorremos como um dos descritores da Prova Campinas 2010.
Nossa análise dos resultados da Prova Campinas 2010 não nos aponta apenas limitações ou mesmo impossibilidades, mas também novos modos possíveis de se ver, de se organizar e de se reorientar os propósitos da escola no mundo contemporâneo. Uma primeira virada pela qual a escola poderia passar diz respeito a uma organização curricular não mais centrada em conteúdos fixos, disciplinarmente organizados, a serem transmitidos, memorizados e devolvidos nas avaliações escritas, mas sim com base em práticas culturais vistas como jogos de linguagem a serem problematizados, sendo tais jogos vistos como linguagens completas.
Além disso, tais práticas ou jogos a serem problematizados, ainda que possam apresentar graus distintos de complexidade, não necessitam ser vistos sob uma organização hierárquica e nem mesmo precisam ser organizados sob a forma de pré-requisitos ou problematizados de uma vez por todas.
Isso nos leva a conceber uma escola não mais homogênea, seriada, seletiva, meritocrática e excludente (em nome de salvar o velho princípio ideológico da igualdade de oportunidades), bem como a desafiar a velha e culturalmente restrita escola do “ler, escrever e contar” que não mais consegue dialogar de modo politicamente democrático e tecnologicamente produtivo com o ilimitado e dinâmico conjunto de jogos simbólicos de linguagem que movimentam o mundo contemporâneo, excedendo ilimitadamente o campo estrito e restrito das práticas da leitura e da escrita em língua nativa.
Uma escola democrática aberta ao mundo e aos desafios do mundo contemporâneo não pode mais ser vista como uma escola de ensino e aprendizagem, como uma “escola produtivista de resultados” a espalhar a ilusão de que teria supostamente o poder de controlar objetivamente competências, habilidades e aprendizagens; mas como escola de diálogo e problematização com o conjunto de práticas extraescolares que se realizam em diferentes campos de atividade humana no mundo contemporâneo.
Assim, de uma escola centrada na transmissão e memorização de conteúdos disciplinares fixos, podemos caminhar para uma escola voltada a problematizações descontínuas de práticas culturais que adquirem significações distintas dependendo dos campos e contextos de atividade humana em que são realizadas.
Precisamos passar de uma escola epistemológica, desenvolvimentista, etapista, propedêutica, meritocrática e anti-democrática, do acúmulo memorialístico de saberes em si, e que se imagina dotada do poder de capacitar as crianças para a vida, para uma escola que, ciente de suas limitações e impossibilidades, organiza as suas atividades com base na problematização de diferentes significações que diferentes práticas culturais extraescolares assumem no mundo contemporâneo.