I
A Prova Campinas 2010 envolveu 2771 alunos matriculados no 4º ano e 455 professores de séries iniciais da rede escolar desta cidade. Deu continuidade à prova anterior (2008), objetivando identificar - para problematizar - práticas escolares de mobilização cultural, ou seja, o conjunto de ações físicas, intelectuais e afetivas que são realizadas pelo coletivo de profissionais da escola e os alunos, com a intenção de promover atitudes, valores e comportamentos, através da mobilização dos conhecimentos.
Em ambas as provas (2008 e 2010), acordou-se que os desempenhos individuais dos alunos não seriam utilizados para classificar ou ranquear alunos, professores, turmas ou escolas. O propósito de ambas também não estava voltado para a avaliação dos desempenhos dos alunos em si mesmos, mas como um meio para se avaliar, discutir e redimensionar práticas escolares em curso na rede. Embora a prova recolha e registre os desempenhos individuais dos estudantes, estes não são abordados como domínios individuais de conhecimento cognitivo, mas como desempenhos situados, forjados no terreno complexo que movimenta a vida escolar, que se constitui, por sua vez, no âmbito político, cultural, social e histórico. É sobre esse conjunto de práticas que os desempenhos individuais gerados pela prova permitem pensar.
Nesse sentido, as respostas são compreendidas e avaliadas como resultantes da participação dos estudantes em um jogo de pergunta e resposta, enraizado na situação em que está sendo estabelecido. Desse jogo participam não apenas o contexto escolar de uma avaliação, com todos os rastros de significado e memória que esta possa ter para os alunos, mas também as práticas referidas por cada um dos textos e seus comandos, que são práticas vinculadas a diferentes contextos de atividade humana.
Um dos maiores desafios da Prova Campinas – 2010 foi a opção de se produzir uma prova indisciplinar, com base em descritores indisciplinares. A edição de 2008 se restringiu a avaliar práticas escolares em circulação nos anos iniciais da Rede Municipal, através do desempenho dos alunos das então terceiras séries, em práticas escolares referentes às disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática. Foi, portanto, uma prova disciplinar, ou, melhor dizendo, uma prova bidisciplinar. Nessa edição, de 2010, não nos limitamos às disciplinas de Português e Matemática – avançamos para todos os componentes curriculares dos anos iniciais da escola - e nem mesmo demarcamos no instrumento de avaliação os itens referentes a este ou àquele componente curricular.
Outro desafio foi conceber um conjunto de descritores capazes de orientar a produção e correção da prova, expressando as concepções que, teórica e politicamente, vêm orientando esse trabalho. Foram definidos quatro descritores: 1. Usos da linguagem nos textos; 2. Usos da linguagem solicitados pelos comandos textuais; 3. Práticas referidas pelos comandos textuais; 4. Campos de atividade humana mobilizados nos jogos de cenas dos textos.
Os 14 textos (subdivididos em 55 itens) que a compõem distribuem-se em dois cadernos e apresentam comandos que solicitam dos estudantes respostas dissertativas (não de múltipla escolha), em que esteja sendo feitodeterminado uso da linguagem, dando-se atenção às diferentes práticas referidas pelos textos/ comandos eaos campos de atividade humana aí envolvidos.
Esses usos foram agrupados em três conjuntos mutuamente excludentes: 1. usos orientados por propósitos preponderantemente normativos; 2. usos orientados por propósitos preponderantemente alegóricos e usos orientados por propósitos que não são nem um nem outro.
As diversas práticas a que se referem os itens da prova foram agrupadas nos seguintes eixos:
- Práticas de Gestão do Patrimônio Geopolítico e Histórico (PGPGH)
- Práticas de Usos do Espaço Físico e do Tempo (PUET)
- Práticas de Gestão de Si e do Outro (PGSO)
Cada uma dessas práticas vincula-se a um campo de atividade humana específico. Em toda a prova estão presentes os seguintes campos de atividade humana, mobilizados nos jogos de cena dos textos: 1. Navegação aérea/astronomia/lazer (festas; show); 2. Cartografia rodoviária; urbanismo público/gestão do espaço público; 3. Gestão estatística de população/gestão geopolítico-administrativa; 4. Gestão pública do lixo/ gestão do lixo urbano; 5. Indústria de reciclagem de papel; 6. Gestão ambiental; preservação de cursos de água; 7. Exploração do trabalho/ trabalho rural; 8. Gestão da saúde corporal/nutrição/gestão ético-estético do corpo; 9. Ciclismo/recreação; 10. Educação escolar/mídia (impressa) escolar; 11. Desportivo; 12. Urbanismo/recreativo, conforme descrito no QUADRO G.
II
A Prova Campinas 2010 foi intencionalmente elaborada sob um regime "indisciplinar" de mobilização cultural, isto é, não pretendeu ser nem uma prova disciplinar e nem interdisciplinar. Isso não quer dizer que nos textos que compõem a prova de 2010 não possamos identificar certos conteúdos que costumam ser alocados, alojados e trabalhados em diferentes disciplinas escolares. Significa que a equipe de elaboradores, ao elegê-los para compor a prova, não o fez com o propósito de tipificá-los (classificá-los) disciplinarmente com base exclusiva em conteúdos fixos previamente vistos como pertencentes a uma disciplina e não a outra, ou a quaisquer delas isoladamente. Assim, não foi o "conteúdo" do texto, e nem a sua "forma" ou o seu "gênero", que o "amarrou" inevitavelmente a uma determinada disciplina, ainda que um leitor externo - professores, pais e mesmo, é claro, as crianças enquanto leitores exclusivos para os quais a prova foi elaborada - pudesse fazer tais associações.
Na verdade, embora professores de todas as disciplinas dos anos iniciais do Ensino Fundamental tivessem participado da elaboração da prova, nenhum aspecto inerente aos textos tomados em si e por si mesmos foi visto por essa equipe como tendo o poder de "amarrá-los" inevitavelmente a uma determinada disciplina.
Assim, a indisciplinaridade de um texto se caracteriza pelo fato de ele não possuir um estatuto categorial fixo e absoluto, mas sim relativo aos diferentes modos como cada leitor o mobiliza em cada prática situada de leitura.
Além disso, os significados produzidos nessas diferentes mobilizações também não são vistos como propriedades inerentes ao texto, e nem como intenções ou desejos arbitrários impostos pelos leitores. Sim, como algo que se constitui em cada ato de mobilização do texto, por força do conjunto de regras - não prescritivas e nem necessariamente explícitas - que orienta, em cada mobilização, as ações do leitor no sentido de se atingir propósitos intencionalmente definidos ou não.
III
A indisciplinaridade dos 14 textos que compuseram a Prova Campinas 2010 está relacionada à nossa intenção de lê-los dinamicamente como JOGOS CÊNICOS DE LINGUAGEM, isto é, como JOGOS DE LINGUAGEM que encenam PRÁTICAS CULTURAIS.
Quando as crianças estavam realizando a Prova Campinas - e elas estavam cientes de que estavam realizando uma prova -, elas estavam realizando efetivamente - e exclusivamente - práticas conjugadas e interdependentes de leitura e de escrita de textos na língua portuguesa, textos estes por nós concebidos como jogos de linguagem ou jogos de cena, orientados por gramáticas diferentes. Isso significa que as práticas que estão sendo referidas, sugeridas e/ou evocadas no leitor por sinais gráficos (palavras, frases, imagens, cores, desenhos, sons etc.),caso da prova, não estão sendo efetivamente realizadas pelas crianças quando leem esse texto ou quando escrevem respostas em obediência a um comando verbal que lhes é remetido.
Assim, no contexto da Prova Campinas 2010, fizemos uma distinção entre práticas culturais diretas (isto é, aquelas que efetivamente realizamos) e práticas culturais indiretas, referidas, sugeridas ou evocadas através das práticas de leitura e de escrita. Uma coisa é andar efetivamente de bicicleta, por exemplo; outra coisa é referir-se (sugerir ou evocar) à prática de andar de bicicleta através da leitura de um texto impresso, contendo ou não imagens.
Vamos dar um exemplo para esclarecer melhor isso. Considere o texto C1T1 (Texto 1 do Caderno 1) da Prova Campinas 2010. Trata-se da letra da música "Vou Pra Campinas" de Alceu Valença e Vicente Barreto. É claro que ele não deve ser visto como um texto de Português, História, Geografia, Matemática, etc., isto é, ele não deve ser visto como um "texto escolar", muito menos como um "texto disciplinar" e nem foi produzido com essa intenção.
Entretanto, quando mobilizado no campo de atividade educativa escolar e, mais especificamente, numa situação de prova, ele pode passar a ser visto como um texto escolar particularmente associado ao domínio de uma disciplina específica - Língua Portuguesa, por exemplo. Mas o fato desse texto poder ser visto como um texto escolar disciplinar não impede que possa ser visto também como uma encenação de um único ator-viajante, que faz uma viagem aérea do Rio de Janeiro a Campinas e que, ao fazê-lo, descreve alegoricamente (figurativamente) a paisagem aérea.
O texto, então, encena a prática cultural de viajar de avião em um contexto do campo aeronáutico de atividade humana. Mais particularmente, encena a prática de viajar de avião do Rio de Janeiro a Campinas, segundo roteiro aéreo previamente definido para essa viagem específica. Mais particularmente ainda, o texto encena uma prática de deslocamento espacial de uma máquina aérea que "realiza" ações automáticas em resposta a um conjunto normativo de ações definidas realizadas pelo piloto que a dirige.
Embora a leitura do texto pudesse nos fazer imaginar essas cenas, o que ele descreve, entretanto, são as ações de um viajante - cantor e poeta - que deverá realizar um show musical na cidade de Campinas. Em seus devaneios projetivos, esse cantor realiza a prática de deslocamento espacial aéreo ao mesmo tempo em que realiza a prática de visualização espacial e a prática de descrição alegórica da paisagem aérea da baía da Guanabara iluminada pelo sol.
Desse modo, ao mesmo tempo em que o leitor realiza diretamente uma prática situada de leitura desse texto - isto é, dessa encenação de práticas conjugadas "citadas" pelo texto -, ele é também remetido, pela prática de leitura, a tais práticas citadas.
IV
Para cada um dos 14 textos da prova há também um conjunto de comandos textuais que são remetidos aos alunos. Comandos textuais são perguntas relativas aos textos, feitas para os alunos. Diante das ilimitadas possibilidades de um leitor compreender e significar um texto, na situação de prova, tais perguntas ou comandos textuais demarcam limites para tais processos subjetivos de compreensão e significação. De certo modo, tais comandos textuais, na situação considerada, representam o poder e o controle exercido pela equipe de avaliação sobre as ilimitadas possibilidades de leitura, compreensão e ressignificação de um texto por parte das crianças que estão sendo avaliadas. Assim, os comandos já delimitam um domínio não arbitrário de aceitabilidade de respostas.
Consideremos, por exemplo, o caso de um dos alunos que deu, para os comandos textuais relativos aos itens C1T1c e C1T1d da Prova 2010, as respostas "botando fogo" e "uma curuja e outros bichos noturnos", respectivamente. Ainda que tais respostas pudessem ser vistas como inadequadas, relativamente a esse domínio compartilhado de aceitabilidade, elas não podem ser vistas como "arbitrárias" ou "sem sentido". Desse modo, é esse domínio de aceitabilidade que se objetiva através dos critérios de correção referentes a cada comando textual. É ele que vai operar como fronteira demarcadora de leituras consideradas adequadas, parcialmente adequadas e inadequadas dos textos da prova, estabelecendo, assim, o que poderiam ser consideradas boas ou más leituras de um texto.
V
Na encenação ou nos jogos de linguagem, podemos identificar, nos 14 textos da prova e em cada um deles, que não apenas práticas e contextos de atividade humana a eles vinculados são referidos. Neles são feitos também diferentes usos da linguagem.
Nessa prova, a equipe de avaliação optou por fazer uma distinção entre o descritor “usos da linguagem feitos no texto” e o descritor “usos da linguagem solicitados pelos comandos verbais” dirigidos às crianças, os quais, quase sempre, elegem um uso especificado, que pode ou não coincidir com algum dos usos da linguagem que estão sendo feitos no texto. Dependendo do uso da linguagem do texto e/ou solicitado pelo do comando, vários usos conjugados da linguagem(alegórico, verbal, narrativo); (normativo, verbal, explicativo); (normativo, verbal, descritivo); (normativo, imagético, informativo), entre outras composições - podem ser feitos por um mesmo ou pelos vários atores que participam do texto visto como encenação (QUADRO G).
É nesse confronto entre usos solicitados da linguagem e usos dela feitos no texto, que as respostas das crianças a cada item da prova devem ser produzidas. Em relação a esses dois descritores interdependentes que orientaram a produção da prova, a maior ou menor adequação da resposta da criança a um item considerado é decidida com base no critério de maior ou menor adequação das respostas das crianças ao uso solicitado da linguagem pelo comando textual referente ao item considerado.
VI
Mas a adequação das respostas das crianças não fica plenamente caracterizada apenas com base nesses dois descritores interdependentes, quais sejam: usos da linguagem feitos no texto e usos da linguagem solicitados pelos comandos textuais.Do mesmo modo como os usos da linguagem feitos no texto escrito ou imagético - visto como encenação produzida e em permanente produção - nem sempre coincidem com aqueles que são solicitados às crianças pelos comandos verbais, também as práticas culturais encenadas nesse texto nem sempre coincidem com aquelas que são referidas nos comandos verbais dirigidos às crianças.
Além disso, como uma mesma prática cultural pode ser encenada em diferentes CAMPOS E CONTEXTOS DE ATIVIDADE HUMANA, então os campos e contextos de encenação também foram levados em consideração na elaboração da prova. Por exemplo, uma prática de deslocamento espacial pode ser encenada em diversos contextos de diferentes campos de atividade - tais como, por exemplo, os campos aeronáutico, rodoviário, náutico etc. -, fato este que modifica a natureza da própria prática.
Desse modo, os textos e os comandos verbais a eles referentes que compuseram a prova de 2010foram selecionados com base nos quatro seguintes descritores eleitos pela equipe de elaboração, de modo a expressar os pressupostos políticos, filosóficos, culturais e educacionais que poderiam sugerir um novo papel a ser desempenhado pela escola, pela cultura escolar e pela avaliação das práticas escolares no mundo contemporâneo:
- Usos da linguagem feitos nos textos selecionados;
- Usos da linguagem solicitados pelos comandos textuais aos alunos;
- Práticas culturais referidas pelos comandos textuais;
- Campos de atividade humana mobilizados nos jogos de cena dos textos selecionados.
Vimos nesses descritores indisciplinares uma possibilidade de se romper com o princípio disciplinar de mobilização cultural na produção da prova. Foram eles também que nos permitiram ver de outra maneira as próprias disciplinas escolares, não mais como conjuntos fixos, hierarquizados e seriados de conteúdos, conceitos e procedimentos, mas como modos característicos e tipicamente recorrentes de se fazer certos usos da linguagem referidos ao domínio especificado de objetos e/ou problemas investigados.
Por exemplo, a disciplina de Língua Portuguesa, quando enfocada em sua dimensão literária, poderia ser vista como fazendo os mesmos usos da linguagem que aqueles feitos pelas disciplinas artísticas em geral, usos estes que se aplicam, porém, quase que exclusivamente a textos escritos. Por outro lado, demo-nos conta de que, em sua dimensão gramatical, a disciplina de Língua Portuguesa acabava fazendo usos da linguagem bastante próximos aos que são feitos pela disciplina de Matemática, quais sejam, usos normativos e convencionais da linguagem que funcionam como padrões de correção da interação comunicativa, dos atos de fala e da produção e organização de textos orais ou escritos em suas dimensões ortográfica, sintática, semântica e estilística.
Assim também, dentre outros usos escolares que são geralmente feitos da linguagem na disciplina de "História", a ênfase, quando se trabalha em obediência estrita ao princípio disciplinar, é fazer usos narrativos da linguagem que se baseiam em rastros ou vestígios considerados pertinentes e, de algum modo, identificáveis e/ou publicamente disponíveis, com o propósito de se constituir memórias ou memórias concorrentes de eventos ou situações consideradas dignas de rememoração.
No caso da “Geografia”, dentre outros, preponderam usos descritivos e explicativos da linguagem, sobretudo relativos às ações dialéticas que se estabelecem entre os homens e a natureza, bem como às interações sociais, em diferentes culturas, no que diz respeito às diferentes formas e propósitos de ocupação, uso, localização, ocupação e demarcação do espaço físico e geopolítico.
Já na disciplina de “Ciências”, ressaltam-se os usos descritivos, conjecturais, explicativos, argumentativos e previsores da linguagem, relativamente aos fenômenos da natureza, quer com o propósito de se produzir discursos nomotéticos (leis causais ou probabilísticas), quer para se projetar e construir tecnologias e artefatos tecnológicos de quaisquer naturezas.
Na matemática, por sua vez, são preponderantes os USOS NORMATIVOS DA LINGUAGEM nos modos de se lidar com objetos de quaisquer naturezas, em quaisquer campos de atividade humana, visando à resolução de problemas orientados por propósitos e/ou critérios sociais previamente definidos e/ou acordados.
Para finalizar esta Introdução, remetemos os leitores a um texto estruturado em forma de perguntas e de respostas - TEXTO DIALOGADO - em que buscamos esclarecer conceitos, como: prova indisciplinar; práticas situadas; contextos de atividade humana; usos da linguagem etc., conceitos esses que foram mobilizados no processo de elaboração da prova, assim como as significativas diferenças entre esta avaliação e a de 2008.