Texto dialogado

UMA CONVERSA SOBRE ALGUNS DESCRITORES QUE ORIENTARAM A ELABORAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS DA PROVA CAMPINAS 2010

 

  1. Por onde você sugere começar esta conversa sobre a PROVA CAMPINAS 2010?

 

Proponho que a gente comece falando sobre USOS NORMATIVOS DA LINGUAGEM nos anos iniciais de escolarização, bem como sobre a complexidade e as dificuldades que acompanham esses usos.  Isso porque a PROVA CAMPINAS 2010 elegeu os “usos da linguagem” – tanto aqueles feitos nos textos, quanto aqueles requeridos nos comandos textuais a eles referidos – como um dos descritores centrais para a elaboração da prova e para a análise das respostas das crianças.

 

  1. Mas o que seria fazer um uso normativo da linguagem?

 

Fazer um uso normativo da linguagem significa agir em conformidade a regras que orientam o sentido das ações corporais que realizamos para atingir certos tiposde propósitos considerados inequívocos, isto é, que não podem dar margem a ambiguidades por parte de quem realiza essas ações. Se, por exemplo, o propósito visado por uma criança é ir de bicicleta de sua casa à casa de um amigo, as ações corporais que essa criança deverá realizar para atingir com êxito o seu propósito, deverão estar em conformidade a regras que lhe permitam manter-se em equilíbrio na condução da bicicleta, bem como a regras que lhe permitam orientar-se no espaço físico, seguindo um caminho inequívoco (que não precisa ser necessariamente único ou unívoco) para se deslocar de sua casa à casa do amigo.

 

  1. Mas o que tem a ver usar a linguagem com andar de bicicleta?

 

Um saber fazer é sempre orientado por regras de um JOGO DE LINGUAGEM, mesmo que não tenhamos ciência dessas regras. Essas regras são aprendidas no próprio exercício do saber fazer. No nosso caso, aprendemos as regras de bem conduzir uma bicicleta tentando, através de ensaios e erros, nos manter em equilíbrio sobre a bicicleta em movimento. Existem leis da Física que explicam como é possível um corpo manter-se em equilíbrio numa bicicleta em movimento. Entretanto, ter ciência dessas leis do equilíbrio físico não nos capacita a andar de bicicleta, assim como adquirir a capacidade de se manter em equilíbrio numa bicicleta em movimento não nos torna, automaticamente, conhecedores das leis do equilíbrio da Física. O que isso tudo quer dizer é que uma coisa é usar a linguagem para explicar as leis do equilíbrio que estariam atuando sobre um ciclista em movimento em uma bicicleta, e outra é usar a linguagem para conduzir diretamente a própria bicicleta, com êxito. Em ambos os casos estamos fazendo uso da linguagem, mas usos diferentes da linguagem. No primeiro caso, o nosso corpo age normativamente falando, isto é, vibrando as cordas vocais de acordo com regras fonéticas que orientam a fala na língua portuguesa, ou então escrevendo, isto é, agindo normativamente de acordo com regras da prática da escrita na língua portuguesa, ou ainda, gesticulando de acordo com regras compartilhadas por uma comunidade, orientado por regras que participam da GRAMÁTICA do verbo explicar, do modo como costuma ser usado pela comunidade científica. No segundo caso, o nosso corpo age orientado por regras gramaticais compartilhadas, não necessariamente por uma comunidade científica, mas por uma comunidade de usuários de bicicletas e que são - voluntária ou involuntariamente - acionadas na interação corporal direta com o artefato cultural denominado "bicicleta". 

 

  1. Quer dizer que sempre que realizamos uma ação ou conjunto de ações corporais estamos também fazendo um uso normativo da linguagem?

 

Nem sempre. Seria mais apropriado dizer que sempre que um conjunto de ações for realizado em conformidade a regras que orientam inequivocamente a realização significativa dessas ações para se atingir uma meta ou propósito, estaremos fazendo USOS NORMATIVOS DA LINGUAGEM. Mas é preciso esclarecer também que nem toda ação que nosso corpo realiza é orientada por regras. Por exemplo, se em seu trajeto, o garoto da bicicleta a que nos referimos ouve o barulho da buzina de um caminhão, assusta-se e cai, o seu corpo realiza uma ação involuntária (a queda), cujo significado não é orientado pelas regras do manter-se em equilíbrio na bicicleta em movimento. Por outro lado, o motorista do caminhão, quando buzina, está fazendo um uso empírico das regras da GRAMÁTICA que orientam os significados que gestos do corpo humano e alertas sonoros ou visuais emitidos pelos veículos ou outros artefatos adquirem no jogo de linguagem normativamente orientado do Código Nacional de Trânsito no Brasil. Dizemos que toda vez que usamos a linguagem, isto é, que realizamos uma sequência de ações corporais em conformidade a regras de uma GRAMÁTICA que orienta o significado dessas ações para se atingir propósitos não necessariamente normativos, tal sequência de ações intencionais serão denominadas PRÁTICAS CULTURAIS.

 

  1. Quer dizer que o garoto, quando cai de sua bicicleta, ao ouvir a buzina, não realiza uma prática cultural?

 

É isso mesmo. Poderíamos, por outro lado dizer que quando o garoto sai de sua casa e chega à casa do colega, equilibrando-se em sua bicicleta, está realizando não apenas a prática cultural de andar de bicicleta como também práticas culturais de orientar-se e deslocar-se no espaço físico em que vivemos, dentre outras. São PRÁTICAS CULTURAIS CONJUGADAS que, embora sejam orientadas por gramáticas diferentes, devem ser realizadas simultaneamente pelo garoto a fim de que atinja com êxito o seu propósito. Além disso, essas práticas, por serem realizadas simultaneamente, interferem umas nas outras, bem como no alcance ou não do propósito. Mais do que interferência, o garoto precisa coordenar adequadamente a realização dessas práticas simultâneas a fim de atingir o seu propósito com êxito. Ao atingir o seu propósito, dizemos que o garoto aprendeu a realizar diretamente práticas culturais situadas e conjugadas de deslocar-se e orientar-se no espaço físico utilizando uma bicicleta.

 

 

 

  1. Quer dizer que realizar uma prática cultural se resume a seguir regras para se atingir um propósito?

 

Pensamos que não. Isso porque quando realizamos uma prática cultural, além de necessitarmos mobilizar artefatos tecnológicos e conhecimentos já anteriormente produzidos comunitariamente, mobilizamos também valores incorporados a esses artefatos e conhecimentos, bem como à própria prática que realizamos. Mas não só isso. Mobilizamos também motivações, sensibilidades e memórias não só de nossas experiências vividas, como também memórias de experiências comunitárias. Assim, o garoto do nosso exemplo não realiza apenas ações corporais regradas para chegar à casa de seu amigo. Ele as realiza motivado por sentimentos e desejos de várias ordens: vontade de brincar, afeição pelo amigo etc. E só pode chegar à casa do amigo com base em rastros de memória de experiências espaciais de orientação e deslocamento no entorno em que vive, as quais, por sua vez, estão conectadas a rastros de memórias comunitárias acerca de como conduzir uma bicicleta etc. Além disso, ir à casa do amigo com uma bicicleta é uma escolha, dentre outras formas possíveis de se chegar àquele destino. Nesse sentido, essa escolha demonstra que o garoto valoriza positivamente a prática de andar de bicicleta, por várias razões possíveis: por ser o meio mais rápido que lhe está disponível; por ser gostoso andar de bicicleta; por querer praticar exercício físico etc. Mas saber e poder andar de bicicleta coloca o garoto em relação de mais poder em relação a outras crianças - que ele conhece ou não - que não podem, por razões financeiras, adquirir uma bicicleta, ou, então, que não aprenderam, ou que estão impossibilitados, por qualquer razão, de andar de bicicleta. Assim, quando falamos em prática cultural, estamos falando em algo bem mais complexo do que, à primeira vista, poderíamos supor.

 

  1. Mas, e se a gente modificasse o propósito que orienta uma prática cultural como a de andar de bicicleta, a gente estaria falando de outra prática? Se um ciclista, por exemplo, estivesse participando de uma competição de ciclismo, ele também estaria realizando a mesma prática cultural que aquela realizada pelo garoto a que estamos nos referindo?

 

Estaríamos, na verdade, falando em práticas que possuem semelhanças, mas também muitas diferenças, uma vez que o propósito de participar de uma competição impõe ao ciclista praticar o ciclismo em conformidade a regras diferentes daquelas a que o garoto estava submetido, tais como: percorrer um trajeto no menor tempo possível; exercitar muitas vezes o mesmo trajeto a ser percorrido na competição; praticar outros tipos de exercícios físicos a fim de adquirir o condicionamento físico requerido para poder competir; submeter-se a um regime alimentar adequado à prática do ciclismo competitivo; conhecer e submeter-se às regras que orientam a competição, dentre outras. Tudo isso exige do ciclista relacionar-se com a bicicleta, bem como com as condições acidentais do seu trajeto, de um modo bem mais especializado do que o faz o garoto. Essa relação especializada com uma bicicleta (a qual, no caso do ciclista, difere da do garoto porque deve adequar-se à prática do ciclismo competitivo) e com os demais instrumentos e acessórios da prática do ciclismo esportivo requer do ciclista, por sua vez, um domínio bem mais elaborado e refinado dos seus movimentos corporais, bem como conhecimentos comunitariamente produzidos por uma comunidade de praticantes do ciclismo competitivo. Além disso, são outras as motivações, desejos, valores e sensibilidades que estão em jogo quando se pratica o ciclismo competitivo, que colocam o ciclista em relações assimétricas de poder de outra natureza que aquelas nas quais o garoto se envolve. Essas diferenças situam o ciclista em um CAMPO DE ATIVIDADE HUMANA - o do esporte do ciclismo competitivo - diferente daquele no qual se movimenta o garoto, qual seja, o campo de atividades de lazer. Ainda que ambos realizem práticas culturais de ciclismo, realizam práticas culturais situadas diferentes.

 

  1. Eu gostaria de entender melhor o que vocês querem dizer quando falam em CAMPOS E CONTEXTOS DE ATIVIDADE HUMANA. Seriam coisas diferentes? E práticas situadas, o que seria isso?

 

Quando falamos em um campo de atividade humana, estamos nos referindo a uma forma aberta e mutável de organização humana que se constitui em função de propósitos também mutáveis que orientam as ações e práticas de uma comunidade de pessoas que se empenham, interagem e colaboram entre si para atingir esses propósitos. Como exemplos, poderíamos falar em: campo de atividade de navegação náutica; campo de atividade de navegação aérea; campo de atividade de equitação; campo de atividade do ciclismo; campo de atividade educativa escolar, dentre outros. Essas pessoas trabalham em colaboração (o que não exclui a possibilidade de surgimento de conflitos diversos entre elas) e nem sempre realizam as mesmas práticas no interior dos campos de atividade de que participam. Essas pessoas podem também participar de diferentes campos de atividade, quer como participantes colaborativos efetivos, quer como meros usuários dos serviços ou produtos que cada um desses campos disponibiliza a toda a sociedade. Por outro lado, como esses campos têm longevidades históricas diferentes, essas comunidades de pessoas sempre se renovam ao longo do tempo e, numa mesma época, podem estar espacialmente dispersas. Do mesmo modo, as práticas que essas pessoas realizam, ao se tornarem obsoletas, também se renovam e se transformam. Devido à longevidade e mutação de um campo de atividade humana, bem como à dispersão espaço temporal da comunidade de prática que constitui esse campo e é por ele constituída, qualquer prática cultural que seja realizada nesse campo precisa ser especificada para que, quando for o caso, possa ser identificada e caracterizada adequadamente. Isso significa que precisamos situar essas práticas no tempo e no espaço, bem como no contexto da divisão do trabalho realizado no interior desse campo de atividade. Por exemplo, um médico, do computador de sua casa, escreve e envia uma mensagem eletrônica para um amigo que está no exterior para saber notícias dele. Logo após isso, esse mesmo médico escreve e envia, do mesmo computador, outra mensagem eletrônica a um de seus pacientes informando-lhe sobre uma avaliação dos resultados de seus exames clínicos. Uma terceira mensagem é enviada ao síndico do prédio onde esse médico mora pedindo-lhe esclarecimentos acerca de valores supostamente indevidos lançados no boleto condominial de seu apartamento. Poderíamos dizer que, nas três situações, o médico está realizando uma “mesma” prática cultural, qual seja, a de escrever e enviar mensagens eletrônicas por meio de um computador. Entretanto, seria também apropriado dizer que, em cada uma dessas situações, o médico realizou práticas situadas “diferentes”, ainda que estivesse num mesmo ambiente físico - o escritório de sua casa - ao escrever as mensagens. Essas práticas situadas são diferentes, não apenas porque os conteúdos e os propósitos das mensagens,  as pessoas que as recebem e os locais onde os destinatários se encontram são diferentes, mas, sobretudo, porque o médico que realiza essas práticas culturais diferentes, quando as realiza, está, em cada um dos casos, realizando-as sob condicionamentos diversos provenientes de diferentes campos de atividade humana: no primeiro caso, o campo das relações humanas pessoais; no segundo caso, o campo de relações humanas profissionais que se estabelecem no campo da saúde e, mais particularmente, no contexto de relações que se estabelecem entre um médico e seus pacientes; no terceiro caso,  o campo da moradia comunitária e, mais especificamente, o contexto da gestão de relações humanas que se estabelecem no interior desse campo.

 

  1. Eu vi que em uma das questões da PROVA CAMPINAS 2010aparece uma pintura artística com uma garota andando de bicicleta (C2T4e). Parece-me estranho dizer que a garota pintada no quadro estaria realizando uma prática cultural situada de andar de bicicleta.

 

Vamos explicar melhor isso! Sob uma perspectiva estritamente biológica, o ato de respirar não poderia ser visto como uma prática cultural. Entretanto, respirar adequadamente na realização da prática de natação se torna uma prática cultural, uma vez que se aprende a respirar com base em uma gramática, e daí, a prática da natação passa a ser realizada de forma dependente de práticas adequadas de respiração naquele contexto. Nesse sentido, nadar e respirar não poderiam ser vistas como práticas interdependentes, uma vez que nadar depende de respirar, mas respirar não depende de nadar. Por sua vez, no contexto da PROVA CAMPINAS 2010, as crianças estavam cientes de que estavam realizando uma prova e, portanto, sabiam, a seus modos, que estavam realizando diretamente - e exclusivamente - práticas conjugadas e interdependentes de leitura e de escrita de textos na língua portuguesa, bem como de práticas de visualização de imagens. Assim, sabiam que estavam participando de jogos cênico-simbólicos interdependentes de linguagem, orientados por gramáticas diferentes. Isso significa que as práticas referidas nos textos da prova não são diretamente realizadas pelas crianças quando leem esses textos ou quando escrevem respostas em obediência a um comando verbal que lhes é remetido. Por essa razão, no contexto da PROVA CAMPINAS 2010, fizemos uma distinção entre práticas culturais diretas - isto é, aquelas que são ou que podem ser diretamente realizadas pelas crianças na situação de prova - e práticas culturais referidas ou sugeridas nos textos. Uma coisa é andar efetivamente de bicicleta; outra coisa é fazer referência à prática de andar de bicicleta através da leitura de um texto impresso, contendo ou não imagens.  Assim, a imagem citada pelo comando textualC2T4e, quando vista como um jogo de cênico-alegórico de linguagem, pode sugerir às crianças que a garota do quadro esteja efetivamente andando de bicicleta, o que é adequado. Porém, em relação à perspectiva em que nos colocamos, seria inadequado dizer que as crianças também estariam realizando diretamente a prática de andar de bicicleta, tanto quanto seria inadequado dizer que a garota do quadro estaria realizando uma prática de patinação. Voltando ao nosso exemplo do ciclista, a distinção que estamos aqui fazendo significa que se no dia seguinte à realização de uma competição de ciclismo o jornal da cidade fizesse uma matéria sobre essa competição, podemos dizer que o jornalista que escreve a matéria, ou as pessoas a que ele se refere, ou ainda os leitores dessa matéria não estão realizando diretamente a prática cultural de ciclismo competitivo.

 

  1. Gostaria de saber com mais detalhes as semelhanças e diferenças entre aPROVA CAMPINAS 2008e a PROVA CAMPINAS 2010.

 

A PROVA CAMPINAS 2010 foi produzida após dois semestres de curso de formação continuada a cerca de 35 professores que atuavam nos anos iniciais do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Campinas (SP). Tal como a que já havia sido realizada em 2008, a prova de 2010 procurou avaliar as práticas escolares que vinham sendo realizadas nos anos iniciais do Ensino Fundamental da Rede Escolar Municipal dessa cidade. Em ambas, acordou-se que os desempenhos individuais dos alunos nas provas não seriam utilizados para classificar ou ranquear alunos, professores, turmas ou escolas. O propósito de ambas também não estava voltado para a avaliação dos desempenhos dos alunos em si mesmos, mas sim como um meio para se avaliar, discutir e redimensionar práticas escolares em curso na rede. Do mesmo modo como ocorreu para a prova de 2008, a avaliação das práticas escolares relativa à prova de 2010 foi apresentada sob a forma de relatório analítico. Em ambos os relatórios, a leitura dos resultados quantitativos do desempenho dos alunos, bem como a interpretação dos textos por eles produzidos para cada item da prova foram tomados como referência para uma análise possível das práticas escolares em curso na rede. Além disso, nossa expectativa foi a de que ambos os relatórios pudessem subsidiar futuros debates relativos a modificações das práticas escolares e das políticas educativas de qualificação profissional no sentido de uma melhoria efetiva da qualidade de ensino na rede escolar do município de Campinas. Por sua vez, uma das diferenças do processo avaliativo de 2010 em relação ao anterior foi que a prova de 2010 foi elaborada com base em análises preliminares – por parte dos professores que participaram do curso de formação - de um amplo conjunto de fontes escolares, tais como: livros didáticos em circulação, cadernos de alunos, projetos pedagógicos das escolas, planejamentos anuais escolares, avaliações escritas realizadas pelos alunos ao longo de 2010 etc. Essa foi uma diferença relativa ao modo de produção da PROVA CAMPINAS 2010. Mas há, é claro, outras diferenças. Uma das mais evidentes foi a opção de se produzir uma prova indisciplinar, com base em descritores indisciplinares.

 

  1. Como assim, uma prova indisciplinar? O que isso quer dizer?

 

A PROVA CAMPINAS 2010 foi elaborada com base em descritores diferentes dos da PROVA CAMPINAS 2008. Isso porque, a Prova de 2008 havia se restringido a avaliar práticas escolares em circulação nos anos iniciais da Rede Municipal através do desempenho dos alunos de quarto ano em práticas escolares referentes às disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática. Ela foi, portanto, uma prova disciplinar ou, melhor dizendo, uma prova bidisciplinar. Já a PROVA CAMPINAS 2010 foi intencionalmente elaborada sob um REGIME INDISCIPLINAR de mobilização cultural, isto é, não pretendeu ser nem uma prova disciplinar e nem interdisciplinar. Isso não quer dizer que nos textos que compõem a Prova de 2010 não possamos identificar certos conteúdos que costumam ser alocados, alojados e trabalhados em diferentes disciplinas escolares. Significa, numa primeira aproximação, que a equipe de elaboradores, ao elegê-los para compor a prova, não o fez com o propósito de tipificá-los  disciplinarmente com base exclusiva em conteúdos fixos previamente vistos como pertencentes a uma disciplina e não a outra, ou a quaisquer delas isoladamente. Assim, não foi o conteúdo do texto, e nem a sua forma ou o seu gênero, que o ‘amarrou’ inevitavelmente a uma determinada disciplina, ainda que um leitor externo (professores, pais e, até mesmo, as próprias crianças enquanto leitores exclusivos para os quais a prova foi elaborada) pudesse fazê-lo. Na verdade, embora professores de todas as disciplinas dos anos iniciais do Ensino Fundamental tivessem participado da elaboração da prova, nenhum aspecto inerente aos textos tomados em si e por si mesmos foi visto por essa equipe como tendo o poder de ‘amarrá-los’ inevitavelmente a uma determinada disciplina, mesmo porque, a intenção não foi mesmo a de se fazer qualquer tipo de ‘amarração’. Assim, a indisciplinaridade de um texto se caracteriza pelo fato dele não possuir um estatuto categorial fixo e absoluto, mas relativo aos diferentes modos como cada leitor o mobiliza em cada prática situada de leitura no que se refere à variedade ilimitada de modos possíveis de se ressignificá-lo em cada ato situado e idiossincrático de mobilização cultural. Além disso, os significados que se manifestam nessas diferentes mobilizações também não são vistos como propriedades inerentes ao texto, e nem como intenções ou desejos arbitrários que o leitor imporia ao mesmo, mas como algo que se constitui em cada ato de mobilização do texto, por força do conjunto de regras - não prescritivas e nem necessariamente explícitas - que orienta, em cada mobilização, as ações do leitor no sentido de se atingir propósitos intencionalmente definidos ou não. Porém, em uma segunda aproximação, a indisciplinaridade dos textos que compuseram a PROVA CAMPINAS 2010 está relacionada à nossa intenção de lê-los dinamicamente como JOGOS CÊNICOS DE LINGUAGEM, isto é, como JOGOS DE LINGUAGEM que encenam práticas culturais ou que, pelo menos, nos remetem a encenações que as leituras dos textos nos evocam, não de forma unívoca, estável e compulsória, mas que inventam ou reinventam as cenas com base em reminiscências de situações efetivamente vividas ou imaginadas pelo leitor em cada prática situada de leitura que realiza. Vamos dar um exemplo para esclarecer melhor isso. Considere o Texto 1 do Caderno 1 da PROVA CAMPINAS 2010 (C1T1). Trata-se da letra da música "Vou Pra Campinas" de Alceu Valença e Vicente Barreto. É claro que esse texto não deve ser visto como um texto de Português, História, Geografia ou Matemática etc.. Também não deve ser visto como um texto escolar e muito menos como um texto disciplinar, dado que ele não foi produzido com essa intenção. Entretanto, quando mobilizado no campo de atividade educativa escolar e, mais particularmente, numa situação de prova, ele pode passar a ser visto, tanto por professores quanto pelas crianças, como um texto escolar particularmente associado ao domínio de uma disciplina específica, qual seja, a de Língua Portuguesa, uma vez que foi naturalizada a crença de que caberia exclusivamente a tal disciplina a responsabilidade de se lidar com produção e interpretação textuais na escola. Mas, o fato desse texto poder ou não ser visto como um texto escolar disciplinar não impede que, em ambas as situações, ele possa ser visto como uma encenação de um único ator-viajante que faz uma viagem aérea do Rio de Janeiro a Campinas e que, ao fazê-lo, descreve alegoricamente (figurativamente) a paisagem aérea. O texto, então, encena a prática cultural de viajar em um contexto aeronáutico de atividade humana. Mais particularmente, encena a prática de viajar de avião do Rio de Janeiro a Campinas, segundo roteiro aéreo previamente definido para essa viagem específica. Mais particularmente ainda, o texto encena uma prática de deslocamento espacial de uma máquina aérea que “realiza" ações automáticas em resposta a um conjunto normativo de ações definidas realizadas pelo piloto que a dirige. Embora a leitura do texto pudesse nos fazer imaginar essas cenas, o que ele descreve, entretanto, são as ações de um viajante - cantor e poeta - que deverá realizar um show musical na cidade de Campinas e que, em seus devaneios projetivos, realiza a prática de deslocamento espacial aéreo ao mesmo tempo em que realiza a prática de visualização espacial e a prática de descrição alegórica da paisagem aérea da baía da Guanabara iluminada pelo sol. Desse modo, ao mesmo tempo em que o leitor realiza efetivamente uma prática situada de leitura desse texto - isto é, dessa encenação de práticas conjugadas “citadas” pelo texto -, ele é também remetido, pela prática de leitura, a tais práticas “citadas”.

 

  1. É! De fato, esse olhar indisciplinar para um texto deve ter levado à elaboração de uma prova com base em descritores bem diferentes dos usuais, tais como o são, por exemplo: conteúdos e conceitos disciplinares; objetivos comportamentais, atitudinais e conceituais; habilidades e competências etc.

 

De fato, você tem razão. Os descritores eleitos foram bem diferentes desses usualmente utilizados. Se você observar, para cada um dos textos da PROVA CAMPINAS 2010 há um conjunto de comandos textuais que são remetidos aos alunos. Comandos textuais são perguntas relativas aos textos feitas para os alunos. Diante das ilimitadas possibilidades de um leitor compreender e significar um texto na situação de prova, tais perguntas ou comandos textuais demarcam limites para tais processos subjetivos de compreensão e significação. Em certo sentido, tais comandos textuais, em cada situação considerada, representam o poder e o controle exercido pela equipe de avaliação sobre as ilimitadas possibilidades de leitura, compreensão e ressignificação de um texto por parte das crianças que estão sendo avaliadas. Assim, por exemplo, quando o aluno João deu, para os comandos textuais relativos aos itens c e d do Texto 1 do Caderno 1 da Prova (C1T1c,d) -  "De acordo com a letra da música, o que o viajante vê às 11 horas da manhã, ao olhar as águas da baía da Guanabara?" e  "O que você acha que ele veria se fossem 8 horas da noite?" -, respectivamente, as respostas - "botando fogo" e "uma curuja e outros bichos noturnos" -, as perguntas já delimitam um domínio não arbitrário de aceitabilidade de respostas que, embora negociado e acordado a duras penas entre a equipe de avaliação(GC1T1c); (GC1T1d), é totalmente desconhecido pelos alunos, ainda que, quase sempre, conjecturável e conjecturado por eles. Nesse sentido, ainda que as respostas de João, acima referidas, pudessem ser vistas como inadequadas relativamente a esse domínio compartilhado de aceitabilidade, elas não podem ser vistas como "arbitrárias" ou "sem sentido". Desse modo, é esse domínio de aceitabilidade, que se objetiva através dos critérios de correção referentes a cada comando textual, que opera como fronteira demarcadora de leituras consideradas adequadas, parcialmente adequadas e inadequadas dos textos da prova, estabelecendo, assim, o que poderiam ser consideradas boas ou más leituras de um texto, quando mobilizados no contexto escolar, e o que poderiam ser considerados bons ou maus leitores de textos, no contexto de atividade educativa escolar.

 

  1. Mas já que estamos aqui falando em arbitrariedade e em boas ou más leituras de um texto por parte dos alunos, não poderíamos também falar em boas e más perguntas ou comandos textuais, ou, até mesmo, em arbitrariedade de certas perguntas, por parte da equipe de avaliação? Falando mais diretamente, uma pergunta assim "tão objetiva" como "O que você acha que ele veria se fossem 8 horas da noite?" não poderia ser vista como arbitrária, sobretudo quando feita a partir de um texto alegórico, como o é a letra da música em foco?

 

Esta é uma ótima pergunta, sobretudo quando se tem em vista o modo artificial como, muitas vezes, a escola lida não apenas com textos alegóricos e, mais particularmente, com textos literários, mas também com os demais discursos que por ela circulam, desde os chamados “problemas de matemática”, até os denominados “questionários” de história, geografia e ciências. É esse modo, em grande medida artificial, desconectado das práticas culturais efetivas ou, até mesmo, falseadores das práticas culturais efetivas, que a escola costuma, muitas vezes, denominar “saber” ou “conhecimento”. Mais do que isso, é em nome desses “saberes” ou “conhecimentos” abstratos (porque abstraídos das práticas efetivas que os mobilizam) que a escola, muitas vezes, julga a capacidade de aprendizagem das crianças, classificando-as em mais ou menos capazes e determinando, desse modo, a continuidade ou a exclusão das crianças da escola. Mas, voltando agora mais diretamente à pergunta que você levanta, é claro que se poderia ver, sim, como você acusa, arbitrariedade por parte da equipe de avaliação ao se fazer uma pergunta “objetiva” referindo-se a um texto que faz USOS ALEGÓRICOS DA LINGUAGEM. Entretanto, quando se tem presente a GRAMÁTICA que orientou a produção da prova, tal “arbitrariedade”, cientemente acionada, pode ser explicada à luz dessa gramática. No caso, tínhamos como propósito fazer com que as crianças tornassem manifestos não apenas os seus modos de ler textos literários ou alegóricos, isto é, seus modos de lidarem com figuras de linguagem, mas também, seus modos de lidarem com a relação entre usos alegóricos e USOS NORMATIVOS DA LINGUAGEM. Em outras palavras, o que estava em jogo aí era, precisamente, tornar manifestos e avaliar a complexa relação entre usos normativos, alegóricos e arbitrários da linguagem. Para nós, nem os usos normativos e nem os usos alegóricos são usos arbitrários da linguagem. Usos alegóricos da linguagem, embora transgridam usos convencionais e estáveis que fazemos das palavras e dos enunciados em determinados JOGOS DE LINGUAGEM, os inscrevem em outros JOGOS DE LINGUAGEM, orientados livremente e criativamente por outras gramáticas que, embora orientem não arbitrariamente a produção de significações, também não as submetem a um esquema objetivo, rígido ou inflexível – determinístico, inferencial ou probabilístico - de causas e efeitos. Como pensamos ser importante que a escola mobilize e diferencie esses vários usos que fazemos da linguagem, mostrando os papéis e os propósitos diferenciados que eles cumprem em diferentes contextos e situações, pensamos que essa diferenciação entre os usos que fazemos da linguagem deveria não só estar manifesta, como também ser objeto de avaliação na PROVA CAMPINAS 2010. Mas é claro também que, em provas tipicamente competitivas, prescritivas e selecionadoras – como as que são infelizmente praticadas nas escolas – esse desejo pedagógico legítimo de avaliar os diferentes usos sociais da linguagem transforma-se, sem dúvida, em instrumento de poder e de controle.  Tanto as crianças quanto os professores e os avaliadores estão cientes dessa relação assimétrica de poder que se instaura entre eles em situações de prova. Mas a instauração dessa relação deve ser vista não exclusivamente ao nível das relações pessoais entre professores, avaliadores e alunos. Essa assimetria deve também ser vista como o poder da escola, enquanto instituição social, sobre professores e alunos. A legitimidade ou não dessa assimetria, bem como do papel aculturador da escola no mundo contemporâneo, ainda que pouco discutido e investigado em seu modus operandi e em seus desdobramentos subjetivos e comunitários, constitui um problema político de extrema importância para toda a sociedade, e não apenas para políticos, governantes, professores, formadores de professores, alunos e pais. Ainda que tanto professores quanto alunos e pais estivessem previamente cientes de que os resultados das Provas Campinas 2008 e 2010 não teriam, de modo algum, o poder de influir sobre as trajetórias escolares individuais das crianças ou sobre a vida profissional dos professores, e de que elas não tinham também como propósito promover ou instaurar comparações ou competição entre crianças ou entre escolas, é quase que inevitável que tanto professores quanto as crianças, na situação da realização efetiva da prova, se vissem condicionados por rastros de controle, poder e competição que a mera palavra "prova" evoca. Seria, portanto, um equívoco metodológico ignorar ou apagar tais rastros de significação ao se tentar qualquer exercício de interpretação dos resultados das Provas Campinas 2008 e 2010. Assim, os comandos textuais devem ser vistos não apenas como comandos que delimitam e restringem as possibilidades de ressignificação e compreensão dos textos da prova, mas também como comandos que induzem ou orientam a significação e a compreensão dos textos segundo um vetor propriamente escolar e disciplinar e, mais do que isso, segundo um vetor que contempla a expectativa de resposta da equipe de avaliação. Em outras palavras, um texto, mesmo quando visto de um modo indisciplinar (como deveria, a rigor, ser visto) pela equipe de avaliação, não impede que ele, na situação de prova, seja visto - e assim supomos que a maioria das crianças e dos professores o vejam - como um texto escolar e disciplinar e, mais do que isso, como um texto cuja leitura já pressupõe uma expectativa de resposta adequada a ser dada por parte do leitor. Assim, o comando textual supõe e impõe uma leitura condicionada do texto por parte do leitor, ao mesmo tempo em que o leitor condiciona ou acomoda a sua leitura do texto aos apelos explícitos de adequação pressupostos pelo comando textual. Desse modo, o comando textual coloca o texto sob um regime demarcatório de boa ou má leitura, de leitura adequada ou inadequada e, por vezes, de leitura verdadeira ou falsa. Desse modo, essa sutileza proposital que diferencia o texto propriamente dito dos comandos textuais a ele referentes perpassa todos os itens da PROVA CAMPINAS 2010, e não apenas este a que estamos fazendo aqui referência. É por isso que, nessa Prova, a equipe de avaliação optou por fazer uma distinção entre o descritor “usos da linguagem feitos no texto” – e, dependendo do texto, vários usos conjugados da linguagem podem ser feitos por um ou pelos vários atores que participam do texto visto como encenação - e o descritor “usos da linguagem solicitados pelos comandos verbais” dirigidos às crianças, os quais, quase sempre, elegem um uso especificado que pode ou não coincidir com algum dos usos da linguagem que estão sendo feitos no texto. É nesse confronto entre usos solicitados da linguagem e usos dela feitos no texto, que devem ser produzidas as respostas das crianças a cada item da prova. Em relação a esses dois descritores interdependentes que orientaram a produção da prova, a maior ou menor adequação da resposta da criança a um item considerado é decidida com base no critério de maior ou menor adequação das respostas das crianças ao uso solicitado da linguagem pelo comando textual referente ao item considerado. Mas a adequação das respostas das crianças não fica plenamente caracterizada apenas com base nesses dois descritores interdependentes, quais sejam: usos da linguagem feitos no texto e usos da linguagem solicitados pelos comandos textuais.

 

  1. Isso quer dizer que a PROVA CAMPINAS 2010 não foi produzida apenas com base nesses dois descritores interdependentes? Há outros descritores?

 

Sim. Do mesmo modo como os usos da linguagem feitos em um texto escrito ou imagético - visto como encenação produzida e em permanente produção - nem sempre coincidem com aqueles que são solicitados às crianças pelos comandos textuais, também as práticas culturais encenadas nesse texto nem sempre coincidem com aquelas que são referidas pelos comandos verbais dirigidos às crianças. Além disso, como uma mesma prática cultural pode ser encenada em diferentes CONTEXTOS DE ATIVIDADE HUMANA, então, os contextos de encenação também foram levados em consideração na elaboração da prova. Por exemplo, uma prática de deslocamento espacial pode ser encenada em um contexto aeronáutico, rodoviário, náutico etc., fato este que modifica a natureza da própria prática, como já discutimos anteriormente. Desse modo, os textos e os comandos textuais a eles referentes que compuseram a prova de 2010 foram selecionados com base nos quatro seguintes descritores eleitos pela equipe de elaboração, de modo a expressar os pressupostos políticos, filosóficos, culturais e educacionais que poderiam sugerir um novo papel a ser desempenhado pela escola, pela cultura escolar e pela avaliação das práticas escolares no mundo contemporâneo:

 

  • Usos da linguagem feitos nos textos selecionados;
  • Usos da linguagem solicitados pelos comandos textuais aos alunos;
  • Práticas culturais referidas pelos comandos textuais;
  • Contextos de atividade humana mobilizados nos jogos de cena dos textos selecionados.

 

  1. Mesmo tendo presente tudo o que já foi dito, gostaria de entender melhor como tais descritores permitem desafiar as disciplinas escolares e apontar para uma organização indisciplinar da cultura escolar.

 

Vimos nesses descritores indisciplinares uma possibilidade de se romper com o princípio disciplinar de mobilização cultural na produção da prova. Foram eles também que nos permitiram ver de outra maneira as próprias disciplinas escolares não mais como conjuntos fixos, hierarquizados e seriados de conteúdos, conceitos e procedimentos, mas como modos característicos e tipicamente recorrentes de se fazer certos usos da linguagem referidos ao domínio especificado de objetos e/ou problemas investigados. Por exemplo, a disciplina de Língua Portuguesa, quando enfocada em sua dimensão literária, poderia ser vista como fazendo os mesmos usos da linguagem que os feitos pelas disciplinas artísticas em geral, usos estes que se aplicam, porém, quase que exclusivamente, a textos escritos. Por outro lado, demo-nos conta de que, em sua dimensão gramatical, a disciplina de Língua Portuguesa acabava fazendo usos da linguagem bastante próximos àqueles feitos pela disciplina de Matemática, quais sejam, usos normativos e convencionais da linguagem que funcionam como padrões de correção da interação comunicativa, dos atos de fala e da produção e organização de textos orais ou escritos em suas dimensões ortográfica, sintática, semântica e estilística. Assim também, dentre outros usos escolares que são geralmente feitos da linguagem na disciplina de "História", a ênfase, quando se trabalha em obediência estrita ao princípio disciplinar é fazer usos narrativos da linguagem que se baseiam em rastros ou vestígios considerados pertinentes e, de algum modo, identificáveis e/ou publicamente disponíveis, com o propósito de se constituir memórias ou memórias concorrentes de eventos ou situações consideradas dignas de rememoração. No caso da “Geografia”, dentre outros, preponderam-se usos descritivos e explicativos da linguagem, sobretudo relativos às ações dialéticas que se estabelecem entre os homens e a natureza, bem como às interações sociais, em diferentes culturas, no que diz respeito às diferentes formas e propósitos de uso, localização, ocupação e demarcação do espaço físico e geopolítico. Já na disciplina de “Ciências”, ressaltam-se os usos descritivos, conjecturais, explicativos, argumentativos e previsores da linguagem, relativamente aos fenômenos da natureza, quer com o propósito de se produzir discursos nomotéticos (leis causais ou probabilísticas), quer para se projetar e construir tecnologias e artefatos tecnológicos de quaisquer naturezas. Na matemática, por sua vez, são preponderantes os USOS NORMATIVOS DA LINGUAGEM nos modos de se lidar com objetos de quaisquer natureza, em quaisquer campos de atividade humana, visando à resolução de problemas orientados por propósitos e/ou critérios sociais previamente definidos e/ou acordados. Na disciplina de “Educação Artística” preponderam os usos alegóricos da linguagem para se produzir obras, de qualquer natureza (arquitetônicas, escultóricas, plásticas, gráficas, fotográficas, cênicas, coreográficas, musicais, fílmicas etc.), produtoras de efeitos performáticos inusitados, surpreendentes e originais, de qualquer natureza, sobre aqueles que com elas interagem de algum modo.

  1. Pelo que vejo, a PROVA CAMPINAS 2010 foi produzida com base em descritores bem diferentes daqueles que vêm orientando, nos últimos anos, a produção de matrizes de avaliação do desempenho escolar no Brasil. Eu gostaria de saber por que razões vocês decidiram não acompanhar o fluxo....

 

Bem, embora não seja o nosso propósito aqui estabelecer comparações com as demais avaliações de desempenho escolar que vêm sendo praticadas no país, a pergunta é completamente pertinente. Uma primeira razão de não termos acompanhado o fluxo diz respeito à divergência de propósitos que parecem orientar as Provas Campinas em relação às demais. A rigor, a Prova Campinas não intenciona avaliar propriamente os desempenhos dos alunos como um fim em si mesmo e com base em um padrão pré-fixado de qualidade definido em termos de conteúdos, objetivos, habilidades ou competências, mas o de tomar os desempenhos das crianças nas práticas de leitura e escrita como um referente indiciário, dentre outros, de avaliação em grande escala das práticas escolares em curso na rede municipal. E mesmo que a Prova Campinas também tenha quantificado percentualmente esses desempenhos individuais exclusivamente em relação a critérios explicitamente definidos que orientaram a correção de cada item da prova, a leitura desses jogos estatísticos de linguagem não é feita nem de modo isolado e nem de modo determinístico. Ao contrário, tais jogos também são vistos como referentes indiciários que, juntamente com outros - dentre eles, as respostas escritas das próprias crianças e, sobretudo, aquelas que se desviam das médias das respostas típicas esperadas – tentam produzir significados para aquilo que supomos caracterizar – mas não arbitrariamente - as práticas escolares efetivamente em curso na rede, com o único propósito de que, com base nessas significações, e em outras feitas pelos próprios professores, essas práticas possam ser tomadas, por eles própriose pelas políticas públicas de formação inicial e continuada de professores, como objeto de ressignificação e modificação no sentido de se produzir uma nova concepção de qualidade de educação escolar sintonizada com a problematização de apelos ético-políticos conflitantes do mundo contemporâneo e, sobretudo, com a efetivação dos apelos de democratização social, política e econômica que estão na base da criação da instituição escolar. Nesse sentido, os nossos descritores não se alinham aos pontos de vista epistemológico e político que parecem orientar avaliações seletivas e meritocráticas de desempenho que se baseiam em noções psicológicas, tais como as de “competências” e “habilidades”, pelo menos do modo como tais noções têm sido mobilizadas em discursos oficiais de avaliação do desempenho escolar em nosso país. Para uma fundamentação mais elaborada desse nosso ponto de vista, remetemos o leitor às referências (MIGUEL, 2015); (MIGUEL & MOURA, 2010).No caso da PROVA CAMPINAS 2010, mesmo que os descritores referentes aos usos da linguagem pudessem ser vistos como conectados a um desejo de se avaliar aquilo que alguns linguistas contemporâneos denominam “competência linguística”, essas competências não são vistas como “modalidades estruturais da inteligência”, sejam elas vistas como inatas ou adquiridas. Além disso,  quando falamos em usos da linguagem em JOGOS DE LINGUAGEM, numa perspectiva wittgensteiniana, isso não equivale, de modo algum, a qualquer concepção unitária e estritamente linguística da linguagem. Em outras palavras, os usos sociais que fazemos da linguagem em nossos JOGOS DE LINGUAGEM não são de modo algum vistos como propriedades – estruturais ou não – de um construto psicológico cognitivista denominado “inteligência”. Para nós, é a própria postulação desse construto – para não dizer, a sua própria caracterização como algo estritamente cognitivo, neutro, evolutivo, objetivo e não problemático - que é, em si mesma, problemática. Mas uma outra crítica que, sob nossa perspectiva, poderia ser feita a matrizes baseadas em habilidades e competências é a adesão implícita, não problematizada por parte de seus elaboradores, à separação entre saber, saber fazer e saber ser, sem dúvida inspirada no slogan “aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser”, presente no documento da UNESCO relativo aos desafios para a educação do século XXI. Alternativamente, vemos a aprendizagem como um fator constitutivo das identidades sempre mutantes dos sujeitos e impossível de ocorrer fora de contextos sociais de interação direta ou indireta, presencial ou remota. Além disso, para a perspectiva em que nos situamos para a produção da PROVA CAMPINAS 2010, saber é sempre um saber fazer (e, para nós, saber ler e escrever em uma língua qualquer é também um saber-fazer), crença esta que vê a ação corporal do sujeito como a única forma possível de se mobilizar, significar e ressignificar saberes, e que contrasta com aquela crença manifesta nos demais tipos de avaliação oficial em curso em nosso país para as quais à dicotomia fixa estabelecida entre saber e saber-fazer corresponderia outra dicotomia fixa análoga entre competência - vista como conjunto de saberes que condicionariam a priori um saber-fazer - e habilidade, vista como decorrência da prática reiterada de uma competência. Nesse sentido, a ilusão absolutista que orienta esse paradigma tecnicista das competências e habilidades é a de que uma vez adquirida uma capacidade genérica e abstrata proporcionada por um saber, bastaria atualizá-la, isto é, aplicá-la em quaisquer outros domínios da ação humana, nos quais transformaríamos supostas capacidades previamente adquiridas em habilidades propriamente praxiológicas. Tudo se passa como se precisássemos nos capacitar a andar de bicicleta antes de atualizarmos, adquirirmos e exercitarmos a nossa habilidade para andar de bicicleta. Sob nossa perspectiva, entretanto, a prática de andar de bicicleta só se adquire praticando-a efetivamente. E mesmo que ouvíssemos uma explicação prévia sobre como andar de bicicleta, a nossa capacidade de compreender tal explicação não se transforma mecanicamente em habilidade para se andar de bicicleta.

 

  1. Acho que ficou mais clara a diferença entre a perspectiva que vem orientando as Provas Campinas em relação às demais práticas avaliativas correntes em nosso país. Mas gostaríamos de entender um pouco melhor como essa sutil distinção entre, por um lado, os construtos psicológicos - “habilidades” e “competências” - e, por outro lado, os construtos socioculturais- “práticas culturais”, “jogos de linguagem” e “campos de atividade humana” - operou na leitura das respostas das crianças que realizaram a prova.

Com base nesses descritores, a PROVA CAMPINAS 2010 deveria dar visibilidade às diferentes maneiras como os alunos lidariam com textos escritos e/ou imagéticos relativamente a perguntas ou comandos textuais que lhes solicitavam usar a linguagem de modos variados. Subjacente a essa opção, havia o entendimento acordado de que não seria a memorização de conteúdos escolares, propriamente dita, aquilo que deveria estar centralmente em jogo na avaliação, mas os diferentes modos como os alunos usariam a linguagem para, com base em seus conhecimentos, crenças e valores - adquiridos ou não na escola -, problematizar práticas culturais efetivamente realizadas em diferentes campos de atividade humana, para além do campo educativo escolar. Um outro entendimento que foi sendo produzido no processo de discussão para a elaboração da prova foi o de que uma coisa seria realizar efetivamente uma prática, e outra, bem diferente, o de se lidar com ela, em situação de prova, através de diferentes modos de se fazer referência a essa mesma prática em textos escritos ou imagéticos. Por exemplo, uma coisa seria observar uma criança efetivamente realizando a prática cultural de amarrar os seus sapatos, e outra, bem diferente, seria pedir-lhe para que lesse um texto no qual esta mesma prática estaria sendo descrita ou referida, de algum modo. A diferença entre as duas situações não é a de que, no primeiro caso, a criança estaria - fora de um campo discursivo - agindo sem pensar e, no segundo - exclusivamente em um campo discursivo - pensando sem agir. Ao contrário, compreendemos que, nas duas situações, a criança estaria participando de JOGOS DE LINGUAGEM, no sentido de Wittgenstein, como também realizando práticas socioculturais concebidas de um modo próximo àquele que,tanto nós como também SCHATZKI (1996, 2001), com base em Wittgenstein, as concebemos. Foi por essa razão que, na PROVA CAMPINAS 2010, recorremos ao descritor wittgensteiniano usos da linguagem, associado à concepção não essencialista de significado, igualmente wittgensteiniana, que afirma que os diferentes significados que uma palavra pode vir a assumir podem ser compreendidos com base nos diferentes usos que dela são feitos em diferentes JOGOS DE LINGUAGEM (WITTGENSTEIN, 1979). Entretanto, as PRÁTICAS CULTURAIS, do modo como as concebemos, talvez pelo fato de enfatizarem a materialidade e a dimensão praxiológica dos discursos, nos induziram a ver um jogo de linguagem no quadro de perspectivas contemporâneas que vêm utilizando metodologicamente a noção de performance como encenação(CARLSON, 2009) ou como um jogo de cena. Como já comentamos, um exemplo possível que pareceu dar legitimidade a essa concepção de jogo de linguagem como jogo de cena é o Texto 1 do Caderno 1 da PROVA CAMPINAS 2010 (C1T1), que faz referência, dentre outras, a uma prática cultural de deslocamento espacial de uma pessoa que realiza uma viagem aérea do Rio de Janeiro a Campinas. É claro que a criança que, em situação de avaliação escolar, lê esse texto em que o autor faz um USO ALEGÓRICO DA LINGUAGEM que induz o leitor a ver nele a encenação de uma viagem real, não está efetivamente realizando esta viagem; entretanto, a criança precisa imaginar esse jogo de cena para que possa fazer os usos adequados da linguagem que lhe foram solicitados pelos comandos textuais das perguntas referentes a esse texto que lhe são remetidas na prova. Essa aproximação conceitual entre jogo de linguagem e jogo de cena torna ainda mais aparente a diferença que se pode acusar entre o realizar diretamente uma prática cultural de amarrar sapatos (ou uma prática cultural de deslocamento espacial de uma cidade a outra), e mobilizá-la verbalmente em práticas de leitura e escrita de textos escritos ou em textos imagéticos. E daí, mais propriamente, fomos construindo a compreensão de que a diferença sutil, porém, fundamental e nem sempre evidente, entre essas duas situações é a de que os agires discursivos (BRONCKART, 2008) - isto é, o conjunto de ações corporais efetivas constituídas e orientadas por determinados modos de se realizar práticas de leitura e escrita de textos escritos em qualquer suporte - que a criança realiza em cada uma dessas situações, embora operem e se expressem referenciados ou orientados por uma "mesma" prática cultural de amarrar sapatos, ou de se deslocar no espaço físico, são, em um caso e outro, de natureza bem diferentes. O que poderia explicar essa diferença? Na PROVA CAMPINAS 2008, já havíamos constatado a tendência de um número expressivo de crianças de, em suas respostas, se evadirem das práticas, dos jogos de cena e dos usos da linguagem mobilizados nos textos e/ou requeridos pelos comandos textuais da prova. As explicações mais recorrentes acionadas pelos professores costumam ser aquelas baseadas em argumentos do tipo: "as crianças não têm paciência de ler o enunciado até o final"; "as  crianças não compreendem o que leem"; "as crianças não prestam a devida atenção no que leem" etc. Entretanto, tais argumentos não nos satisfaziam completamente, uma vez que, embora eles tendessem a explicar o "recurso à evasão ou ao desvio", detectável nas respostas de algumas crianças, com base em graus diferenciados de aprendizagem ou apropriação das práticas de leitura e de escrita por parte das crianças, eles não conseguiam explicar, nem uma detectável precariedade na mobilização estritamente gramatical das práticas de leitura e escrita em muitas respostas nas quais o "recurso à evasão" não se mostrava presente e nem o grau muitas vezes bastante elaborado de se praticar a leitura e a escrita, no plano estritamente gramatical, igualmente detectáveis em respostas nas quais o "recurso à evasão" se fazia presente. Dialogando com pesquisas realizadas por (LAVE, 1996), (LAVE, 2003) e com outras produzidas na perspectiva da teoria da atividade (LAVE & CHAIKLIN, 2006) (LEKTORSKY, 2002), fomos então levados a pensar que o apelo às práticas culturais – as quais, enquanto constituintes de um dos descritores da PROVA CAMPINAS 2010, já haviam sido também acionadas na PROVA CAMPINAS 2008 -, mesmo quando concebidas como JOGOS DE LINGUAGEM ou jogos de cena, não poderia, por si só, explicar o "recurso à evasão". Tivemos, então, que recorrer a mais um descritor: os CAMPOS E CONTEXTOS DE ATIVIDADE HUMANA mobilizados nos jogos de cena dos textos, vendo-os, porém, não fixa e topologicamente como lugares ou ambientes stricto sensu nos quais se realizam práticas, mas dinâmica e normativamente como cenários possíveis - reais ou imaginários - que os leitores, com base em suas vivências pessoais, acionam ou inventam no momento em que realizam suas práticas personalizadas de leitura e escrita situadas - isto é, os seus jogos de cena - e que condicionam de forma idiossincrática os modos como praticam suas leituras e escritas situadas. Desse modo, o “recurso à evasão”, na realidade, nada mais seria do que o estabelecimento legítimo de semelhanças de família entre rastros de significação provenientes de diferentes JOGOS DE LINGUAGEM. É esse o modo como não só as crianças, mas todos nós, seres humanos, em qualquer idade, produzimos significações, isto é, através de processos miméticos que, com base em semelhanças e analogias entre situações diversas, remetem, ao mesmo tempo, a novas e diferenciadas significações.

 

  1. É possível ter uma visão da organização estrutural da PROVA CAMPINAS 2010 com base nesses novos descritores que orientaram a sua elaboração?

 

Sim, é claro! Essa visão estrutural geral serviu de base para a leitura que fizemos do desempenho quantitativo e qualitativo das crianças, vistos como referentes indiciários para se compreender os modos como elas - através dos modos como praticaram a leitura e a escrita de forma personalizada - significaram as práticas culturais mobilizadas pelos textos da prova. Essa visão estrutural também nos permitiu comentar as características de algumas práticas escolares em circulação na rede escolar municipal de Campinas, que mobilizavam práticas análogas àquelas referidas na Prova. Para ter essa visão estrutural geral da PROVA CAMPINAS 2010, você pode acessar e estudar atentamente o QUADRO G, que especifica cada um dos 55 comandos textuais dos 14 textos que compuseram os cadernos 1 e 2 dessa Prova, em função de cada um dos 5 seguintes descritores eleitos: 1) Eixos de Práticas; 2) Usos da Linguagem nos Textos; 3) Usos da Linguagem solicitados pelos Comandos Textuais; 4) Práticas Referidas pelos Comandos Textuais; 5) Campos de Atividade Humana mobilizados nos Jogos de Cena dos Textos. As práticas culturais referidas pelos textos que compuseram a PROVA CAMPINAS 2010 distribuíram-se nos três seguintes eixos de práticas:

 

  • Práticas de Gestão do Patrimônio Geopolítico e Histórico (PGPGH)
  • Práticas de Usos do Espaço Físico e do Tempo (PUET)
  • Práticas de Gestão de Si e do Outro (PGSO)